Tempero secreto
- Ana Paula Carvalhais

- 6 de mar. de 2021
- 2 min de leitura
No alpendre, duas ou três samambaias incansavelmente verdes. Na estante da sala, o tom de cinza claro ficava por conta do telefone antigo e do porta-retratos com a fotografia do marido, falecido há tantos anos. Já na copa, o pote no alto do guarda-louça conservava o pão com um perfume sem igual. Lembro-me de todos os cantos da casa da minha avó Ana. Se fecho os olhos, sei de cor a localização de cada pé de fruta no quintal.
Na última semana, Benjamin foi passar alguns dias na casa da minha sogra e voltou amuado. Com toda razão! Assim como eu amava fazer companhia à minha avó e brincar horas a fio em sua casa, todo tempo do mundo nunca é suficiente para as brincadeiras e mimos dele por lá. As visitas são bem frequentes, porém, no último ano, somente com uso de máscara. Quando a saudade aperta demais, então aumentamos a cautela, providenciamos os testes de covid-19 e ele pode passar alguns dias com mais liberdade e muitos abraços, como aconteceu na semana passada. Se os dois primos, praticamente da mesma idade, fazem o mesmo - aí a farra está completa!
Não preciso dizer que aqui a casa fica vazia e silenciosa demais. Mas sei exatamente a alegria e o poder desses momentos para meu filho. Casa de vó é fábrica de memória afetiva. E, enquanto ele estava por lá, eu pensava na minha avó Ana. Talvez porque seja março, o mês dela. Hoje faz 110 anos de seu nascimento. E foi também num março de trinta anos atrás que ela partiu pro céu, mesmo permanecendo tão presente em algumas lembranças. Coincidência ou não, no começo da pandemia, em março do ano passado, eu relembrava essa foto da minha avó, estampando um texto que eu escrevera para a revista Vida Simples.
Além de ser um dos raros registros fotográficos, a imagem revela muita dela. Minha vó sabia como agradar cada um dos netos e vivia rodeada por eles. Quase não saía da de casa, mas conhecida e era conhecida por todos na pequena cidade. Sua cadeira de ferro, trançada com fio plástico, ficava à porta da casa ou do outro lado da calçada, sempre buscando o sol ou fugindo dele. Era dali que ela acompanhava o passar do tempo e das pessoas.
Recordo que minha avó tinha um jeito muito peculiar de cumprimentar. “Como vai, Dona Ana?” - ao que respondia - “Vou temperando...” Não, não era conversa de cozinheira. Só depois de muito tempo eu fui saber que minha avó tinha depressão. Minha criança nunca desconfiou. O que ela mais sabia era temperar a dor e a alegria, o quente e o frio, a leveza e o peso dos dias com o mesmo dom com que harmonizava as cores do seu crochê.




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