top of page

Na escuridão

  • Foto do escritor: Ana Paula Carvalhais
    Ana Paula Carvalhais
  • 3 de jun. de 2020
  • 2 min de leitura

Foram cinco episódios nesses 75 dias. Suficientes para criarem um ritual. Ao voltar sozinho do supermercado, meu marido passa álcool em todas as mercadorias, coloca cada coisa sobre a mesa da varanda, retira os sapatos e vai direto para o chuveiro. Com um pano mais seco, também embebido em um pouco de álcool, recolho e guardo cada produto. Uma cena impensável. Não lembro ter visto nem em filmes - até porque a ficção científica não costuma retratar as banalidades cotidianas dentro das catástrofes.


Mas essa nova realidade tem também algo familiar. Sim, já disse aqui que uma crise guarda sempre a memória de outra. Repleta de produtos, a mesa fica como nos tempos de inflação galopante. Tal como agora, no início da década de 1980, era preciso estocar. Fazer uma grande compra para o mês inteiro era um jeito de dar alguma sobrevida ao ordenado. Toda vez que lembro dessas coisas, mais cresce minha admiração pela mãe. Não entendo mesmo como dava conta de tudo.


Na casa da minha infância, obviamente, não se passava álcool em cada coisa antes de ser guardada. O rito era outro. Eu e minha irmã mais velha ajudávamos a conferir todos os itens na notinha da máquina registradora, já que não existia cupom fiscal e podia haver alguma divergência nas compras sempre entregues pela Kombi do estabelecimento que já não existe mais.


Isso feito, era hora de levar itens de limpeza, enlatados e outros não-perecíveis para guardar nas prateleiras do porão. Era nossa despensa improvisada. Era ali também que moravam meus medos. Tristeza maior do mundo era ter que buscar uma pasta de dente ou sabonete depois que anoitecia. O interruptor era alto demais e, para piorar, ficava no meio daquele grande cômodo. Maior tinha que ser a nossa valentia. Foi assim até o Plano Real.


Hoje, todos nós estocamos alimentos para não sair de casa e poupar a vida. Mas não se sabe também até onde vai o fôlego para suportarmos economicamente. O medo ronda. Em vários aspectos. As lembranças brotam na crise dos quarenta e poucos com quarentena. Os tons são crepusculares. Só que na minha infância, o Brasil caminhava para o fim do regime militar. Hoje, além da pandemia, tudo volta a escurecer, com sombras e ameaças graves à Democracia. Não consigo acreditar que alguém deseje a volta dos “porões da ditadura”. Como essa gente ousa pedir intervenção? Medo de criança não é nada perto da escuridão que envolve o submundo das milícias.



ree

 
 
 

Posts recentes

Ver tudo

Comentários


© 2019 por Ana Paula Carvalhais

  • Preto Ícone Instagram
  • Black Facebook Icon
  • Black Twitter Icon
  • Black LinkedIn Icon

Amarelo Comunicação Planejada

bottom of page