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Incômodos

  • Foto do escritor: Ana Paula Carvalhais
    Ana Paula Carvalhais
  • 31 de mar. de 2020
  • 2 min de leitura

Perdi a conta do número de roxos. As quinas são agudas e o espaço, parece não mais comportar a antiga cômoda. Vez por outra, acabo me trombando no móvel. É como se ele quisesse apenas chamar a atenção. Dizer que ali está. Hoje, como num filme, fico imaginando o quanto já passeou por aquela casa. Mudou de cômodos, ganhou outros tons, puxadores diferentes dos originais, um tampo de vidro. Mas as quinas, sempre imbatíveis!


Penso que talvez a velha cômoda dançasse conforme a música da nossa família. A cada contexto, alternando os ritmos. A casa cheia, meninada, separação dos meus pais, ninho vazio, chegada dos netos – não necessariamente nessa ordem. E, a cada nova situação, algum cantinho era reservado a ela. Sempre. Pelo menos até a última semana, quando minha mãe comentou que estava se desfazendo do móvel. Será doado.


Estranhei. Mães são figuras apegadas. Depois de me tornar uma do time, reconheço. E a minha não é diferente. Já havia algum tempo que minhas irmãs e eu a aconselhávamos para que retirasse o móvel do quarto hoje destinado às visitas. Ali, a grande cômoda se acomoda com mais alguns apegos, reduzindo o espaço e aumentando o perigo para os quadris desavisados que, acabam ganhando novos hematomas!


Aqui, de longe, fiquei imaginando o que, afinal, teria levado minha mãe à decisão - já que, com perdão do trocadilho, parecia tão cômodo seguir com a velha cômoda. Desconfio que isso tenha relação com seu momento de quarentena. Afinal, mesmo após ter-se aposentado, minha mãe é do tipo que não para um minuto. Começou a trabalhar fora muito cedo, criou as filhas com malabarismos inacreditáveis e ainda hoje faz mil e uma atividades. Parar, abruptamente, não deve estar sendo fácil. É natural que, com mais tempo em casa, alguns desconfortos aflorassem.


Pensando bem, não tem sido assim com todos nós? Para algumas pessoas, o incômodo está dentro de si. Especialmente para os casais, o desafio talvez seja não deixar que defeitos e manias do parceiro, de repente, agigantem-se e tornem-se insustentáveis. Há também mais barulho, alguns silêncios perturbadores, ansiedade e a descoberta de que podemos não ser tão boa companhia assim. Em isolamento familiar, vivemos uma espécie de versão ultrarrealista da famosa pergunta “quem você levaria para uma ilha deserta?”. E a resposta - que ninguém dizia – mas que parece ser a mais assertiva é “o melhor de nós mesmos".


Mas, voltando à antiga cômoda... Só recentemente, ao dar a notícia de que o móvel está com dias contados, foi que minha mãe contou que ele fora comprado quando ela estava grávida de mim. Na época, sem acesso a exames de ultrassonografia, ela e meu pai o compraram para o quartinho do menino ou menina que ia chegar. Eu não sabia. Para mim, é como se a cômoda sempre tivesse estado lá. Isso, claro, remeteu-me imediatamente, aos momentos em que eu preparava o quarto do meu filho. E não é que - como mãe e como filha -, comecei a achar essa despedida mais difícil do que imaginara?




 
 
 

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