214
- Ana Paula Carvalhais

- 17 de mai. de 2020
- 2 min de leitura
Hoje me lembrei do sorriso de Joana. Sem nenhuma explicação aparente. Instantaneamente, vieram também a voz e o leve sotaque do Norte de Minas, sempre emoldurados pelo seu sorriso. Que terá sido da mulher que tanto destoava do restante daquele pensionato de freiras carrancudas?
“Ana Paula, 214, telefone”. A voz era de Joana e soava como música aos meus ouvidos. Ela era a “moça” da recepção. Na verdade, uma jovem senhora negra, de sorriso perfeito, muito claro e franco, que anotava todos os recatos e nos transferia as escassas e esperadas ligações telefônicas. O anúncio era feito pelo microfone, trazendo sempre o nome e depois o número do quarto da moradora.
Eu havia me mudado para o local duas semanas antes do meu aniversário. No dia, foram várias ligações da família e de amigos. Consequentemente, várias foram as chamadas pelo sistema de alto falante e eu, eufórica, disparando pelo corredor até o ponto onde ficavam dois aparelhos antigos de telefone. Havia também “Ana Paula, 214, portaria”. Nesse caso, era alguma rara visita ou, mais certo, que tivesse chegado alguma correspondência. Foi a época da minha vida que mais escrevi e recebi cartas. Duas, no máximo, três páginas, em papel fininho para postar como “carta social” com selo de um centavo dos Correios.
Sem dúvida, foi também a minha primeira e mais longa quarentena. O pensionato era um emaranhado de solidões. Dezenas de meninas vindas de toda parte e, em sua grande maioria, na luta para garantir uma vaga na universidade. O cursinho ficava a três quadras dali e eu quase não circulava na minha nova cidade . Eram tempos de grana curtíssima e tensão pré-vestibular. A geração Enem jamais conseguiria imaginar. A gente apostava todas as fichas em um curso, em apenas duas ou três instituições. Tudo tinha que dar certo.
E Deu. Primeiro foi a PUC, depois o convite para morar com três grandes amigas. No pensionato, foram uns oito meses que não deixaram saudade. Nem da comida, nem do lugar. Mas hoje a memória me trouxe o sorriso e a voz de Joana. Ela bem poderia ter feito carreira como cantora, locutora de rádio ou de TV. Mas gastava sua voz, colocando um pouco de cor naquele lugar transitório, desbotado, recheado de freiras, apostilas e meninas do interior.




Comentários